Seguindo um pouco a linha de postagem de ontem, resolvi postar outra carta de Clarice. Desta vez não se trata de uma carta formal, (dedicada ao presidente da república), mas sim, uma carta dedicada à suas irmãs. A carta foi escrita em 1946, (período em que a escritora morava em Berna - Suíça), e traz uma rica descrição sobre a percepção de Clarice com relação ao estilo de vida neste país.
Berna, 5 de maio de 1946 - 4 horas, domingo.
Minhas queridas:
É uma pena eu não ter paciência de gostar de uma vida tão tranquila como a de Berna. É uma fazenda. No domingo, como hoje, passou um grupo do Exército de Salvação, homens e mulheres cantando em coro, com voz bem calma e afinada, sem vergonha. Às vezes se veem camponesas, de alguma cidadezinha perto, vestidas com os trajes regionais, o rosto vermelho, honesto, com os olhos azuis - os olhos são tão honestos que nem parecem observar. E os camponeses com roupa de ombros estreitos, nariz corado. E o silêncio que faz em Berna - parece que todas as casas estão vazias, sem contar que as ruas são calmas. Dá vontade de ser uma vaca leiteira e comer durante uma tarde inteira até vir a noite um fiapo de capim. O fato é que não se é a tal vaca, e fica-se olhando para longe como se pudesse vir o navio que salva os náufragos. Será que a gente não tem mais força de suportar a paz? Em Berna ninguém parece precisar um do outro, isso é evidente. Todos são laboriosos. É engraçado que pensando bem não um verdadeiro lugar para se viver. Tudo é terra dos outros, onde os outros estão contentes. É tão esquisito estar em Berna e é tão chato esse domingo... Prece com domingo em S. Cristóvão. Mas a prática termina ensinando que jamais se deve no domingo ir de tarde no cinema, deve-se sempre ir de noite, porque se fica esperando pela noite... É o caso de hoje, embora não haja filme direito pra ver. Hoje depois do almoço fomos ver os ursos de Berna. Os ursos são o símbolo da cidade; quando se ia fundar a cidade encontrou-se um urso; isso foi considerado como bom augurio e ali mesmo fundou-se Berna, onde é agora Bärengraben, caverna dos ursos. É por um caminho muito bonito, ladeando o rio, que é mai sou menos raso, muito caudaloso e brilhante. Dá-se comida aos ursos e para eles ganharem comida eles procuram fazer gracinhas - gracinhas de urso... É muito bonito. Mas num domingo... Parece que num domingo a gente deve fazer coisas grandiosas. Por exemplo, eu ia passar um domingo com vocês. Esta carta é bestinha, é carta de domingo, soa a "ajantarado" e a folga de empregada... e a mosca voando... Na verdade quando eu escrevo carta eu estou com um anzol compridíssimo cuja isca bate no Rio de Janeiro para pescar resposta. É um jogo sujo, esse de mandar qualquer carta para receber RESPOSTA. O pior é que vocês, com falta de tempo, reúnem dez cartas minhas e respondem em uma.
Estou me lembrando de Marcinha: fui levá-la ao cinema Rex e comecei a errar caminho que não foi vida, de vez em quando eu via que estava entrando por um beco errado. A Márcia suportou tudo calada. E eu calada também, envergonhada. De repente Marcinha disse: titia, eu acho que você está bobeando...
Dando assim notícias de Marcinha, que é a flor mais preciosa do mundo, eu encerro a missiva de domingo e vou por a carta no correio, se estiver aberto, para pegar o avião de amanhã. Neste mesmo avião seguem uma carta para S. Clemente e outra para Silveira Martins, escritas ontem; botei ontem a data de hoje porque sabia que só iriam amanhã. Me abracem, queridas, sejam felizes sempre.
Estou me lembrando de Marcinha: fui levá-la ao cinema Rex e comecei a errar caminho que não foi vida, de vez em quando eu via que estava entrando por um beco errado. A Márcia suportou tudo calada. E eu calada também, envergonhada. De repente Marcinha disse: titia, eu acho que você está bobeando...
Dando assim notícias de Marcinha, que é a flor mais preciosa do mundo, eu encerro a missiva de domingo e vou por a carta no correio, se estiver aberto, para pegar o avião de amanhã. Neste mesmo avião seguem uma carta para S. Clemente e outra para Silveira Martins, escritas ontem; botei ontem a data de hoje porque sabia que só iriam amanhã. Me abracem, queridas, sejam felizes sempre.
CLARICE
Ga, no meio de tanta 'bunda' nesses meios de comunicações digitais, foi lindo ler sobre Frida Kahlo e fiquei impressionada com aquela obra 'o que a água me deu'. Uma pintura ilusória e melancólica misturada com toda a realidade dela, e a luta pela vida.. adorei! Obrigada! :) Vou desbravar agora o que vc escreveu sobre a Clarice Lispector - que inclusive, eu sabia dessa carta dedicada as irmãs, quando fui pra capital da Suiça e li à respeito. E logo à princípio, qualquer semelhança, não é mera coincidência: "É uma pena eu não ter paciência de gostar de uma vida tão tranquila como a de Berna" - (tudo aquilo que a gente conversa diariamente, Ga) "Parece que num domingo a gente deve fazer coisas grandiosas"
ResponderExcluirbjos, Tati
ResponderExcluirSerá que a gente não tem mais força de suportar a paz?
ResponderExcluirEssa frase me fez parar pra pensar que, quando essa "paz" traz o silêncio, onde a gente consegue escutar nossos ecos, nosso vazio, quando nos faz encarar nos mesmos, é quando percebemos que não estamos preparados... ( ou quando eu percebo)