segunda-feira, 5 de março de 2012

Esta Suíça é um cemitério de sensações...


Seguindo um pouco a linha de postagem de ontem, resolvi postar outra carta de Clarice. Desta vez não se trata de uma carta formal, (dedicada ao presidente da república), mas sim, uma carta dedicada à suas irmãs. A carta foi escrita em 1946, (período em que a escritora morava em Berna - Suíça), e traz uma rica descrição sobre a percepção de Clarice com relação ao estilo de vida neste país. 

Berna, 5 de maio de 1946 - 4 horas, domingo. 

Minhas queridas:

É uma pena eu não ter paciência de gostar de uma vida tão tranquila como a de Berna. É uma fazenda. No domingo, como hoje, passou um grupo do Exército de Salvação, homens e mulheres cantando em coro, com voz bem calma e afinada, sem vergonha. Às vezes se veem camponesas, de alguma cidadezinha perto, vestidas com os trajes regionais, o rosto vermelho, honesto, com os olhos azuis - os olhos são tão honestos que nem parecem observar. E os camponeses com roupa de ombros estreitos, nariz corado. E o silêncio que faz em Berna - parece que todas as casas estão vazias, sem contar que as ruas são calmas. Dá vontade de ser uma vaca leiteira e comer durante uma tarde inteira até vir a noite um fiapo de capim. O fato é que não se é a tal vaca, e fica-se olhando para longe como se pudesse vir o navio que salva os náufragos. Será que a gente não tem mais força de suportar a paz? Em Berna ninguém parece precisar um do outro, isso é evidente. Todos são laboriosos. É engraçado que pensando bem não um verdadeiro lugar para se viver. Tudo é terra dos outros, onde os outros estão contentes. É tão esquisito estar em Berna e é tão chato esse domingo... Prece com domingo em S. Cristóvão. Mas a prática termina ensinando que jamais se deve no domingo ir de tarde no cinema, deve-se sempre ir de noite, porque se fica esperando pela noite... É o caso de hoje, embora não haja filme direito pra ver. Hoje depois do almoço fomos ver os ursos de Berna. Os ursos são o símbolo da cidade; quando se ia fundar a cidade encontrou-se um urso; isso foi considerado como bom augurio e ali mesmo fundou-se Berna, onde é agora Bärengraben, caverna dos ursos. É por um caminho muito bonito, ladeando o rio, que é mai sou menos raso, muito caudaloso e brilhante. Dá-se comida aos ursos e para eles ganharem comida eles procuram fazer gracinhas - gracinhas de urso... É muito bonito. Mas num domingo... Parece que num domingo a gente deve fazer coisas grandiosas. Por exemplo, eu ia passar um domingo com vocês. Esta carta é bestinha, é carta de domingo, soa a "ajantarado" e  a folga de empregada... e a mosca voando... Na verdade quando eu escrevo carta eu estou com um anzol compridíssimo cuja isca bate no Rio de Janeiro para pescar resposta. É um jogo sujo, esse de mandar qualquer carta para receber RESPOSTA. O pior é que vocês, com falta de tempo, reúnem dez cartas minhas e respondem em uma. 
Estou me lembrando de Marcinha: fui levá-la ao cinema Rex e comecei a errar caminho que não foi vida, de vez em quando eu via que estava entrando por um beco errado. A Márcia suportou tudo calada. E eu calada também, envergonhada. De repente Marcinha disse: titia, eu acho que você está bobeando...
Dando assim notícias de Marcinha, que é a flor mais preciosa do mundo, eu encerro a missiva de domingo e vou por a carta no correio, se estiver aberto, para pegar o avião de amanhã. Neste mesmo avião seguem uma carta para S. Clemente e outra para Silveira Martins, escritas ontem; botei ontem a data de hoje porque sabia que só iriam amanhã. Me abracem, queridas, sejam felizes sempre.


CLARICE

3 comentários:

  1. Ga, no meio de tanta 'bunda' nesses meios de comunicações digitais, foi lindo ler sobre Frida Kahlo e fiquei impressionada com aquela obra 'o que a água me deu'. Uma pintura ilusória e melancólica misturada com toda a realidade dela, e a luta pela vida.. adorei! Obrigada! :) Vou desbravar agora o que vc escreveu sobre a Clarice Lispector - que inclusive, eu sabia dessa carta dedicada as irmãs, quando fui pra capital da Suiça e li à respeito. E logo à princípio, qualquer semelhança, não é mera coincidência: "É uma pena eu não ter paciência de gostar de uma vida tão tranquila como a de Berna" - (tudo aquilo que a gente conversa diariamente, Ga) "Parece que num domingo a gente deve fazer coisas grandiosas"

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  2. Será que a gente não tem mais força de suportar a paz?
    Essa frase me fez parar pra pensar que, quando essa "paz" traz o silêncio, onde a gente consegue escutar nossos ecos, nosso vazio, quando nos faz encarar nos mesmos, é quando percebemos que não estamos preparados... ( ou quando eu percebo)

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