domingo, 4 de março de 2012

Senhor Presidente Getúlio Vargas


Clarice Lispector foi uma mulher à frente de seu tempo. Corajosa e dona de si. Colocava no papel sensações e sentimentos, questionamentos íntimos e sinceros. Com seu estilo singular, ela imprimiu personalidade e vida em seus livros, que parecem uma extensão de si. Apesar de nascida na Ucrânia, ela é considerada por muitos (me incluo nessa classe) como a maior escritora brasileira de todos os tempos. O que muitos desconhecem é que Clarice enfrentou um penoso caminho para sua naturalização. Por essa razão decidi publicar a carta (retirada do livro Correspondências-editora Rocco), que a jovem escritora (na época ela tinha 21 anos), escreveu para o então presidente Getúlio Vargas. 

Rio de Janeiro, 3 de junho de 1942.

Senhor Presidente Getúlio Vargas:

        Quem lhe escreve é uma jornalista, ex-redatora da Agência Nacional (Departamento de Imprensa e Propaganda), atualmente n´A Noite, acadêmica da Faculdade Nacional de Direito e, casualmente, russa também. 
       Uma Russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo mas que pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo. Que não tem pai nem mãe - o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado - e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre ele. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças. 
        Senhor Presidente. Não pretendo afirmar que tenho prestado grandes serviços à Nação - requisito que poderia alegar  para ter direito de pedir à V. Ex.ª a dispensa de um ano de prazo, necessário a minha naturalização. Sou jovem e, salvo em ato de heroísmo, não poderia ter servido ao Brasil senão fragilmente. Demonstrei minha ligação com esta terra e meu desejo de servi-la, cooperando com o DIP, por meio de reportagens e artigos, distribuídos aos jornais do Rio e dos estados, na divulgação e propaganda do governo de V. Ex.ª. E, de um modo geral, trabalhando na imprensa diária, o grande elemento de aproximação entre governo e povo.
     Como jornalista, tomei parte em comemorações das grandes datas nacionais, participei da inauguração de inúmeras obras iniciadas por V. Ex.ª, e estive a mesmo ao lado de V. Ex.ª mais de uma vez, sendo que a última em 1º de maio de 1941, Dia do Trabalho. 
        Se trago a V. Ex.ª o resumo dos meus trabalhos jornalísticos não é para pedir-lhe, como recompensa, o direito de ser brasileira. Prestei esses serviços espontânea e naturalmente, e nem poderia deixar de executá-los. Se neles falo é para atestar que já sou brasileira. 
    Posso apresentar provas materiais de tudo que afirmo. Infelizmente, o que não posso provar materialmente - e que, no entanto, é o que mais importa - é que tudo que fiz tinha como núcleo minha real união com o país e que não possuo, nem elegeria, outra pátria senão o Brasil. 
        Senhor Presidente. Tomo a liberdade de solicitar de V. Ex.ª a dispensa do prazo de um ano, que se deve seguir ao processo que atualmente transita pelo Ministério da Justiça, com todos os requisitos satisfeitos. Poderei trabalhar, formar-me, fazer os indispensáveis projetos para o futuro, com segurança e estabilidade. A assinatura de V. Ex.ª tornará de direito uma situação de fato. Creia-me, Senhor Presidente, ela alargará minha vida. E um dia saberei provar que não a usei inutilmente. 

Clarice Lispector

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